" Que boa era a vida de Lisboa "
" ( ... ) Esta deficiência é mais para lamentar, quando bem se conhece o amor da gente portuguesa às flores, de que estão patentes as provas nos telhados, saguões, varandas, janelas e muros dos velhos bairros da cidade, abrindo sorrisos nas faces tristes de Alfama e Mouraria. Por lá vicejam em testeiros, caixotes e panelas, os mangericos, os craveiros, as blandinas, as zínias e as sécias de preciosa lembrança.
É o delicado gosto, a comoção rural do nosso povo, a protestar suavemente contra panoramas de altos prédios, contra os emparedamentos humanos que furtam as graças e deleites da Natureza aos olhos que delas sempre ficaram saudosos; "
Hipólito Raposo, « Modos de Ver »
Quando, em 1979, fui viver para Carnide, sentia-se ainda um cheirinho dessa Lisboa. Os olhos deliciavam-se ainda com o pouco que de tal pintura campestre permanecera. Vida de bairro prazerosa, onde as compras eram feitas na pequena mercearia, depois de uma incursão na tradicional padaria, onde os mais idosos tinham encontro marcado para a conversa diária que os distraía do vazio que a aposentação sempre traz.
Nunca a tarde seria a mesma sem um passeio no belo jardim do coreto. Em havendo tempo, ali estava o banco de madeira à espera que nele me sentasse com um livro nas mãos. Não senti, pois, o choque de quem sai da aldeia para a cidade grande, demasiado grande, onde seria muito fácil perder-me no meio da multidão indiferente. Mas bastava dela me afastar para reconhecer já sinais de mudança: esse remanso não iria durar muito, convenci-me.
Anos depois tive a prova de que assim era, quando, de passagem, atravessei a outrora pacata estrada das Laranjeiras. Muito outra, e não gostei do que vi. Desisti logo de revisitar aquele que durante algum tempo tinha sido o meu bairro. Medo do que iria encontrar.