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O Tempo Esse Grande Escultor

Um arquivo dos postais que vou deixando no Estado Sentido, mas também um sítio onde escrever outras coisas minhas..Sem Sitemeter, porque pretende ser apenas um Diário, um registo de pequenas memórias...

O Tempo Esse Grande Escultor

Um arquivo dos postais que vou deixando no Estado Sentido, mas também um sítio onde escrever outras coisas minhas..Sem Sitemeter, porque pretende ser apenas um Diário, um registo de pequenas memórias...

Até que a traça o coma.

Cristina Ribeiro, 04.06.10

 

 

Quando, há 57 anos, nasceu o meu irmão mais velho, a madrinha, que fora também a da minha mãe, disse-lhe para não se preocupar, que ela mesma compraria o vestido do futuro neófito.

Sabendo tratar-se de pessoa económicamente remediada, a mãe não se preocupou: o primeiro filho por certo teria um vestido-de-ver-a-Deus com a dignidade que uma mãe sonha para essa cerimónia, que o iria tornar cristão, como ela mesma,  os seus pais, e marido.

Na véspera do acontecimento, à noite, apareceu a dita senhora com o vestido; quando o viu, a minha mãe foi a correr refugiar-se no quarto a chorar - nunca lhe passara pela cabeça que o vestido pudesse ser tão feio!

Mas já nada podia fazer: o baptismo estava marcado para a manhã seguinte. Apenas uma ideia a consolou - quando tivesse o segundo filho não deixaria que ninguém comprasse o vestido: ela, e só ela, o faria.

         O que aconteceu logo no ano seguinte. Contou-nos que os dois, ela e o meu pai tiveram de fazer um grande esforço económico para comprar um vestido a gosto, mas disso não abdicavam.

O vestido que depois serviu para todos os sete filhos que se seguiram, para os muitos netos, e há-de vestir os bisnetos, atendendo ao bom estado de conservação. Só se reformará desse trabalho no dia em que, por escapar à vigilância de todos nós, pois que já o consideramos património familiar, alguma traça mais atrevida nele encontre repasto.

Era um rádio assim.

Cristina Ribeiro, 21.04.10

 

 

Duas a três horas sem electricidade, numa noite de muito vento e chuva, naquele tempo que se segue ao jantar, passado a ver televisão, a ler ou a navegar pela internet. De repente ficámos sem saber o que fazer.

Juntámo-nos na sala, mudos e quedos, até que o silêncio foi quebrado pela minha mãe: que até os 15/16 anos ( não soube precisar ), os seus serões eram assim- no Inverno, em que escurecia mais cedo, a minha avó cozinhava à luz de uma candeia presa num gancho que pendia do tecto. A mesma luz que alumiava o jantar e o arrumar da cozinha, enquanto os homens jogavam à sueca.

No final, o meu avô tirava a candeia e, à frente de todos, ia abrindo caminho até aos quartos. No móvel de cada um deles havia um castiçal de latão, com uma vela e fósforos que cada um acendia à luz da candeia, que o avô levava. Dava-lhes um tempo determinado para terem a vela acesa, até que ia de quarto em quarto verificar se todos a tinham apagado.

Até que um dia a electricidade chegou. Parece que a inauguração foi de arromba, com discurso do regedor, muito aplaudido.

A  primeira compra dos avós foi um rádio, grande, que ainda cheguei a conhecer. Os vizinhos iam todos ouvir, principalmente quando havia jogos de hóquei em patins, desporto que parece ter gozado de muita popularidade naquela altura.

No momento em que a minha mãe contava que a avó quase colava o ouvido ao aparelho, antes d'o avô, mais viajado, lhe dizer não ser necessário, acenderam-se as luzes, e cada um de nós retomou a rotina de todas as noites, mas contente por ter ouvido mais uma das histórias que a minha mãe conta.

Desta casa saía, muitas vezes,

Cristina Ribeiro, 18.03.10

 

 

madrugada ainda, alumiado o caminho pela candeia a petróleo, a tia avó Maria a caminho da igreja, longe que ela ficava. A essa hora, já a irmã, minha avó, havia muito tratava de cozer o pão, a tempo de quem ia trabalhar o ter já pronto para, lá na Venda, acompanhar a aguardente mata-bicho com que cada um começava o dia. De cada vez a tia Maria batia na janela da casa do forno, a dar os Bons Dias, e quando a irmã dizia ser ela tola, que àquela hora deveria estar em casa, que deveria estar a fazer companhia à mãe , respondia: vou rezar por vós, já que não podeis ir.

" ...que a felicidade fosse mais fácil, num contexto tão mais difícil"

Cristina Ribeiro, 27.02.10

 

diz o Diogo, na caixa de comentários. Não tenho dúvidas, face ao que vou ouvindo de pessoas que viveram nesses anos muito difíceis. Há dias, íamos a passar por um local cheio de casas- tipo-maison, e disse a minha mãe- " - Olha, aqui era onde nos Domingos à tarde fazíamos os nossos bailaricos; juntávamo-nos algumas raparigas e rapazes, alguns deles lançavam mão dos cavaquinhos, e era uma alegria pegada...". Passava-se isto nos princípios dos anos cinquenta, quando por aqui a pobreza era mais do que muita, e o que valia era que a palavra solidariedade não era " dita da boca para fora". Hoje, honestamente, não sei se teríamos o valor que tinham então.

Almoço familiar. Digo à minha mãe que tenho uma rubrica sobre as histórias que conta.

Cristina Ribeiro, 14.02.10

 

Falo-lhe, por exemplo, das tardes em que ia, com as amigas, lavar no rio, e como as aproveitavam bem. Pergunta-me se me lembro do grande tanque de granito no quintal dos avós; que sim, e como gostava de dar à manivela na grande roda que fazia trabalhar a bomba da água para o encher... " - Pois foi o teu avô que o mandou fazer, quando descobriu a maroteira ".

Tendo nascido e crescido numa aldeia

Cristina Ribeiro, 28.11.09

 

                                  ( A casa do Arturinho )

 

cedo me habituei a conviver com toda a gente; todos nos conhecíamos, e foi nessa altura que conheci pessoas boas, almas simples e amigas; refiro-me concretamente a pessoas que já não estão entre nós, e que eram família, não pelo sangue, mas no carinho e amizade com que sempre nos brindaram . Hoje pensei muito em três dessas pessoas, e falei delas com a minha mãe, que acrescentou pormenores comoventes dessas vidas.- por exemplo fiquei a saber que o Luizinho, uma pessoa de quem todos gostavam, que vivia do que lhe davam - roupa, comida...- , e cujo sorriso tão sincero e inocente- sempre a dizer " É vida! É vida! ", era nele o espelho de uma alma pura, com o dinheiro que lhe iam dando juntou o necessário para mandar dizer uma missa quando morreu outra pessoa filha de um deus ainda menor- Está no céu! - concluiu a minha mãe.

 

Outra pessoa boa, de quem já falei aqui, era o SrArmindo. Como gostava de descer aquelas escadas de madeira tosca para falar com o SrArmindo!

 

A terceira pessoa era o Arturinho: a viver com uma irmã também já idosa, numa casinha muito perto da minha avó materna, todas as crianças que frequentavam a , muito próxima, Escola Primária o adoravam. Presenteava-nos muitas vezes com sacholinhas ( pequeninas enxadas ) que fazia com bocados de aço que usava para fazer os garfos que vendia na feira.

Queria falar com a minha mãe.

Cristina Ribeiro, 28.11.09

 

A ver se lhe comprava rifas para ajudar na reconstrução da igreja de S. Martinho de Sande. Pela idade aparente e forma como falou, imaginei tratar-se de uma amiga de infância. Depois foi o assistir, e nela participar também, pois que queria satisfazer a curiosidade, à conversa entre amigas que andaram juntas na Escola Primária há mais de sessenta anos, e continuaram essa amizade na juventude. Separadas geograficamente pelos respectivos casamentos Amiga de quem ouvira falar muitas vezes, mas não conhecia. Fiquei a saber que era uma das muitas que, feita a 3ª Classe, se dedicaram à tecelagem de peças de tecido de algodão, em tear manual, na casa de cada uma delas, mas para uma fábrica da cidade, que lhes fornecia a linha de algodão. -" Lembras-te de quando fugias à tua mãe, para ires enrolar fio nas canelas para minha casa? " -" E quando íamos para o monte da Senhora da Saúde, apanhar os picos dos pinheiros para acendermos o lume? ".

 

E por momentos foi como se tivesse vivido " o tempo delas ".

Desta casa saía muitas vezes,

Cristina Ribeiro, 28.11.09

 

madrugada ainda, alumiado o caminho pela candeia alimentada por petróleo, a tia avó Maria a caminho da igreja, longe que ela ficava. A essa hora, já a irmã, minha avó, havia muito tratava de cozer o pão, a tempo de quem ia trabalhar o ter já pronto para, lá na Venda, acompanhar a aguardente mata-bicho com que cada um começava o dia. De cada vez a tia Maria batia na janela da casa do forno, a dar os Bons Dias, e quando a irmã dizia ser ela tola, que àquela hora deveria estar em casa, que deveria estar a fazer companhia à mãe , respondia: vou rezar por vós, já que não podeis ir.

Noite de lua cheia. Aqueceu o clima, mas aqui, no monte,

Cristina Ribeiro, 28.11.09

 

venta. Quando em noites assim, de vento forte, a minha avó sempre contava à minha mãe e tios, pequenos que eram, histórias que os punham com os cabelos em pé, e com medo de irem dormir sozinhos: era a altura preferida pelo lobisomem para sair à rua, ou para o também lendário corredor vaguear sem destino pela aldeia, tornando seu escravo todo o ser humano que lhe aparecesse. O melhor mesmo seria pôr traves nas portas, náo fosse o diabo teçê-las. E, no fim, iam dormir todos juntos, por via dos pesadelos.

Passávamos no Paul, quando vimos que alguém fazia fogueiras

Cristina Ribeiro, 27.10.09

 

 com as folhas de tília caídas- que as noites têm sido ventosas-, não para se aquecer, que frio não fazia, mas para tornar " mais limpo " o paul. Distraí-me do facto de achar encanto neste tapete castanho, para lembrar ( que seria de mim sem as minhas memórias? ) as vezes que fui, com as irmãs e primas mais velhas, apanhar folha para amaciar a cama dos porcos, evitando-lhes assim o contacto, doloroso, com o tojo, aquela planta espinhosa de flor amarela. A tornar mais rica esta evocação, juntam-se então as memórias da minha mãe: " Chegávamos a pegar-nos à bulha, porque cada uma de nós queria ajuntar a maior quantidade de folha possível ". Sabia agora da importância que estes quadrados irregulares, que o vento lançava ao chão, tiveram no passado; tanta, que podia ser motivo de peqquenas desavenças.

 

Novembro de 2008