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O Tempo Esse Grande Escultor

Um arquivo dos postais que vou deixando no Estado Sentido, mas também um sítio onde escrever outras coisas minhas..Sem Sitemeter, porque pretende ser apenas um Diário, um registo de pequenas memórias...

O Tempo Esse Grande Escultor

Um arquivo dos postais que vou deixando no Estado Sentido, mas também um sítio onde escrever outras coisas minhas..Sem Sitemeter, porque pretende ser apenas um Diário, um registo de pequenas memórias...

Ora aí estava quem lhe havia de contar a verdade.

Cristina Ribeiro, 04.12.09

 

Enxergara-a a descer o monte, pela janela da cozinha, onde aprontava o comer para o seu homem, que no campo mourejava desde que rompera o sol já, naquele seu jeito alquebrado e a falar sozinha. Saíu-lhe pois ao caminho, ainda a limpar as mãos ao avental, porque se havia alguém que sabia, pelo seguro, o que se passava na aldeia, era ela.

-Então sempre é certo que o Manel da Zefa se abalou, deixando a pobre com dois crianços nos braços?

-É certo é; e ainda tu não sabes da missa nem metade....Que isto d'homes...

-Ó Ti' Maria, não diga isso. Vai para quinze anos que saí da Igreja de braço dado com o meu António, e nunca por nunca ele me fez infeliz. Tás certa, Marianinha, mas olha que como vocês sei de meia dúzia de casos, não mais, e tu sabes que conheço muita gente...; mas vou-me indo porque ando cá com a ideia que, de tristeza, a Zefa até se esquece de alimentar as duas criaturinhas

Que bô traste lhe saíra o Manel.

Cristina Ribeiro, 04.12.09

 

Sabia mais de metade da missa, sim senhor, que a ela a Zefa sempre se confiara; não sabia era que o desfecho, que adivinhava já, se fosse dar tão cedo. Mas ele havia coisas que não eram para publicar... Assim pensava Marianinha quando lhe entrou pela casa adentro o seu homem esfomeado: que fosse tirar das mãos a terra, que a merenda não tardava na mesa... Depois que o viu saciado, sentou-se-lhe em frente e pediu a dispensasse aquela tarde do trabalho que sabia ser farto, mas era uma precisão o que ia fazer,que não podia deixar para outro dia, e, ademais, estava fiada de que lhe traria notícia de quem os iria ajudar no amanho da terra... Ficou-se a vê-lo afastar-se, e, tirado o avental, meteu pelo caminho que levava a casa da amiga. Que não pagava a pena aquela tristeza, dir-lhe-ia; que cuidasse de olhar em frente, e para isso haveria muita gente a ajudá-la.Que pensasse no que de bom ainda lhe estaria reservado. Por ora, precisavam da ajuda dela lá na lavoura, e não tivesse cuidados com os pequenos, pois que não faltaria quem os acautelasse.

" Já não leio, releio "

Cristina Ribeiro, 04.12.09

 

dizia José Luís Borges; mas o escritor argentino já tinha, quando assim falava, na sua conta corrente milhares e milhares de páginas lidas, pelo que podia dar-se a esse luxo. Não é, evidentemente, o meu caso, pelo que ainda há à minha espera muitos livros a serem folheados pela primeira vez. Não obstante, é uma das coisas de que gosto: reler. Voltar aos livros de que gostei, e que me garantem uma segunda leitura que me mostrará coisas passadas despercebidas, porque por elas passei quase como raposa por vinha vindimada. Pormenores ricos, que se escondem nas entrelinhas. Tenho feito isso com os dois grandes do século XIX - menos com Eça, é verdade -, mas, do mesmo modo, com escritores mais próximos de nós no tempo, com a balança a pesar mais para os seguidores da Escola Camiliana

Numa tarde em que o calor se fez muito,

Cristina Ribeiro, 04.12.09

 

opto por recolher à sombra do carvalho, que, em boa hora, este ano achou por bem estender um pouco mais os ramos, de modo a agraciar-nos com uma protecção maior ainda. Comigo vai um livro, que não abro sequer, pois foi quase logo que os olhos se fecharam, e entrei no que, mal ou bem, chamamos de sono dos justos. Acordo bem mais tarde, com o alvoroço dos cães, que vêm ao lago refrescar-se. Noto que está mais fresco já, e preparo-me para a leitura que a sesta adiara. É nessa altura que oiço, vindo não sei donde, um ruído que não identifico. Ponho-me à coca, e vejo um pássaro preto, que depois me dizem ser um pica pica, subespécie da pega, a picar no pinheiro manso ao lado, outrora feudo de uma colónia de esquilos, entretanto desaparecida, fazendo buracos perfeitos, onde, dizem-me, é hábito esconder tesouros como pinhões ou pequenos insectos. Não se assusta o pássaro com a nossa presença, antes continua, imperturbável, o trabalho minucioso de perfuração; a propósito desta sua faceta de sociabilidade, alguém diz ter um amigo domesticado um pica pica, que agora imita a voz humana.