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O Tempo Esse Grande Escultor

Um arquivo dos postais que vou deixando no Estado Sentido, mas também um sítio onde escrever outras coisas minhas..Sem Sitemeter, porque pretende ser apenas um Diário, um registo de pequenas memórias...

O Tempo Esse Grande Escultor

Um arquivo dos postais que vou deixando no Estado Sentido, mas também um sítio onde escrever outras coisas minhas..Sem Sitemeter, porque pretende ser apenas um Diário, um registo de pequenas memórias...

Amândio César

Cristina Ribeiro, 20.12.09

" Foi então que, para além do homem que lê tudo o que lhe cai sob os olhos, que se cultiva infatigável e incomodamente, começa a esboçar-se o poeta, o escritor que há-de ser. Noites inteiras consumidas na leitura e no debate, na declamação e no convívio - pode parecer pouco mas são de facto os primeiros passos de um amor entranhado à cultura. Na Arcada, em Braga, o nosso ponto de encontro era o Café Astória. Ali se travavam algumas das mais apaixonadas e veementes polémicas entre grupos de sinal diferente. Ali se situava a nossa tribuna possível e o lugar de encontro da nossa tertúlia. Ali fizemos um longo e penoso aprendizado de intervenção pública ". ( José Moreira )

 

" O personagem já me tinha impressionado à distância, nas cavaqueiras da Porta Férrea e nos corredores da Faculdadede Letras, pelo arrebatamento que punha na eloquência da fala " ( Joaquim Veríssimo Serrão )

 

Dois pequenos excertos incluídos no livro com que a Câmara Municipal de Valdevez quis homenagear um dos seus filhos ilustres. Reuniu, para isso, textos de grandes vultos da Cultura Nacional, de João Bigotte Chorão a António Manuel Couto Viana, de Adriano Moreira a Pinharanda Gomes, e tantos outros... Se é certo que nasceu nos Arcos, foi em Braga que decorreu muito da sua vida ( a direcção contrária de um escritor cá muito de casa - Tomaz de Figueiredo ); e por me saber desta região, há tempos, um blogger amigo perguntou-me se tinha, ou tinha conhecimento deste " in memoriam ". Se eu nem conhecia o escritor! Disse-me então que se tratava de um grande contista e poeta. Que iria procurar... As tentativas feitas nesse sentido revelaram-se infrutíferas, e nada consegui saber, para além do que me fora dito, sobre Amândio César. Até ontem, quando um familiar me ofertou este exemplar. Escusado será dizer que não descansei enquanto o não li, e que não descansarei até encontrar pelo menos algumas das obras aí mencionadas.

 

Obrigada, Manuel.

" Como não nasceu em berço de ouro, foram-lhe vedados estudos

Cristina Ribeiro, 06.12.09

 

certamente ao alcance da sua inteligência e da sua curiosidade intelectual. Operário têxtil quando a necessidade lhe impôs começar a ganhar cedo a vida, pertencia a essa honrada e insatisfeita família de autodidactas que se formam no convívio dos livros e dos letrados. A sua vocaçãopara a intervenção social e cultural levou-o a múltiplas iniciativas, a colaborar em jornais e, sem grandes meios financeiros, a ser livreiro e editor. Com a chancela da Livraria Pax, de Braga, editou dezenas e dezenas de livros de ficção, poesia, ensaio e crítica. Ali vemos, acenando-nos da estante, autores como Azinhal Abelho, Amândio César, Rodrigo Emílio, Pinharanda Gomes, Álvaro Ribeiro...Não era a mira do lucro que movia o editor ( não são comerciais esses autores ) mas um acto de serviço a valores não apenas literários. Um dos maiores desgostos da sua vida foi o desaparecimento, contra sua vontade, da Livraria Pax, travestida por mudança de ramo em pronto-a-vestir. Não faltam hoje livrarias e editoras que parecem um pronto-a-vestir..." ( João Bigotte Chorão ) Na mesma ocasião, perguntava o amigo blogger se havia algum livro evocativo do editor bracarense. A busca foi então mais fácil, pois que logo o encontrei na biblioteca paterna, numa edição, muito reduzida, levada a cabo por sua mulher. Lembro-me bem da Livraria Pax, onde, nas palavras do escritor Bernardino Amândio, " se reuniam intelectuais, escritores, jornalistas, num salutar convívio em que José Moreira marcava a sua presença com intervenções sempre vincadas pelo brilhantismo da sua muito consolidada cultura ", porque foi lá que adquiri os primeiros livros, já com meios próprios, e aí conheci o livreiro já numa fase bem adiantada da sua doença, mas a fazer jus à máxima " as árvores também morrem de pé ".

Eu estive em « Elsinore »,

Cristina Ribeiro, 06.12.09

 

mas não senti a presença de fantasmas a clamar por vinganças, enquanto sussurravam, sem que os pudesse ouvir, que " algo está podre no reino da Dinamarca ". O ambiente Shakespeareano, vim encontrá-lo, antes, em « Elsenor », onde, numa casa igualmente grande e fria, num monólogo feito de lágrimas e poesia, um homem vai chorando a podridão do que o rodeia. A ausência da mulher amada, musa inspiradora de música que enchia o reino agora vazio.

De Bulhão Pato conheço, só, alguns, poucos, poemas.

Cristina Ribeiro, 06.12.09

 

Lendo, porém, mais um capítulo de « O Escritor na Cidade », de João Bigotte Chorão, sei da sua faceta de memorialista, um género literário que me encanta. Que escreveu, entre outros livros de memórias, que, leio na Wikipédia, " são uma interessante fonte para o conhecimento da política portuguesa na última metade do século XIX ", «Sob os Ciprestes », onde evoca " a grande trindade romântica de Garrett, Castilho e Herculano », e fico a saber que o escritor « pinta com mão comovida, mas firme, o quadro em que vive e domina Herculano », ele que nesse exercício de recordar diz « Eu pinto uma época ». E assim parece ser , quando ouvimos de Bigotte Chorão, ser o poeta-memorialista « autor de uma pintura de costumes ou de género, em que as personagens e o meio ambiente surgem com toda a minúcia e nitidez, como na arte holandesa ». Mais adiante, vejo, já mais próximo de nós no tempo, Fidelino de Figueiredo reflectir o memorialismo como « a posição de espírito de quem se deleita em recordar e entesourar lembranças ». E fecho esta reflexão com aquela frase emblemática de Tomaz de Figueiredo « Ah! , mundo esmagador das recordações. Emendadas umas nas outras, aboiando como de mar sem fundo ».

Ora aí estava quem lhe havia de contar a verdade.

Cristina Ribeiro, 04.12.09

 

Enxergara-a a descer o monte, pela janela da cozinha, onde aprontava o comer para o seu homem, que no campo mourejava desde que rompera o sol já, naquele seu jeito alquebrado e a falar sozinha. Saíu-lhe pois ao caminho, ainda a limpar as mãos ao avental, porque se havia alguém que sabia, pelo seguro, o que se passava na aldeia, era ela.

-Então sempre é certo que o Manel da Zefa se abalou, deixando a pobre com dois crianços nos braços?

-É certo é; e ainda tu não sabes da missa nem metade....Que isto d'homes...

-Ó Ti' Maria, não diga isso. Vai para quinze anos que saí da Igreja de braço dado com o meu António, e nunca por nunca ele me fez infeliz. Tás certa, Marianinha, mas olha que como vocês sei de meia dúzia de casos, não mais, e tu sabes que conheço muita gente...; mas vou-me indo porque ando cá com a ideia que, de tristeza, a Zefa até se esquece de alimentar as duas criaturinhas

Que bô traste lhe saíra o Manel.

Cristina Ribeiro, 04.12.09

 

Sabia mais de metade da missa, sim senhor, que a ela a Zefa sempre se confiara; não sabia era que o desfecho, que adivinhava já, se fosse dar tão cedo. Mas ele havia coisas que não eram para publicar... Assim pensava Marianinha quando lhe entrou pela casa adentro o seu homem esfomeado: que fosse tirar das mãos a terra, que a merenda não tardava na mesa... Depois que o viu saciado, sentou-se-lhe em frente e pediu a dispensasse aquela tarde do trabalho que sabia ser farto, mas era uma precisão o que ia fazer,que não podia deixar para outro dia, e, ademais, estava fiada de que lhe traria notícia de quem os iria ajudar no amanho da terra... Ficou-se a vê-lo afastar-se, e, tirado o avental, meteu pelo caminho que levava a casa da amiga. Que não pagava a pena aquela tristeza, dir-lhe-ia; que cuidasse de olhar em frente, e para isso haveria muita gente a ajudá-la.Que pensasse no que de bom ainda lhe estaria reservado. Por ora, precisavam da ajuda dela lá na lavoura, e não tivesse cuidados com os pequenos, pois que não faltaria quem os acautelasse.

" Já não leio, releio "

Cristina Ribeiro, 04.12.09

 

dizia José Luís Borges; mas o escritor argentino já tinha, quando assim falava, na sua conta corrente milhares e milhares de páginas lidas, pelo que podia dar-se a esse luxo. Não é, evidentemente, o meu caso, pelo que ainda há à minha espera muitos livros a serem folheados pela primeira vez. Não obstante, é uma das coisas de que gosto: reler. Voltar aos livros de que gostei, e que me garantem uma segunda leitura que me mostrará coisas passadas despercebidas, porque por elas passei quase como raposa por vinha vindimada. Pormenores ricos, que se escondem nas entrelinhas. Tenho feito isso com os dois grandes do século XIX - menos com Eça, é verdade -, mas, do mesmo modo, com escritores mais próximos de nós no tempo, com a balança a pesar mais para os seguidores da Escola Camiliana

Numa tarde em que o calor se fez muito,

Cristina Ribeiro, 04.12.09

 

opto por recolher à sombra do carvalho, que, em boa hora, este ano achou por bem estender um pouco mais os ramos, de modo a agraciar-nos com uma protecção maior ainda. Comigo vai um livro, que não abro sequer, pois foi quase logo que os olhos se fecharam, e entrei no que, mal ou bem, chamamos de sono dos justos. Acordo bem mais tarde, com o alvoroço dos cães, que vêm ao lago refrescar-se. Noto que está mais fresco já, e preparo-me para a leitura que a sesta adiara. É nessa altura que oiço, vindo não sei donde, um ruído que não identifico. Ponho-me à coca, e vejo um pássaro preto, que depois me dizem ser um pica pica, subespécie da pega, a picar no pinheiro manso ao lado, outrora feudo de uma colónia de esquilos, entretanto desaparecida, fazendo buracos perfeitos, onde, dizem-me, é hábito esconder tesouros como pinhões ou pequenos insectos. Não se assusta o pássaro com a nossa presença, antes continua, imperturbável, o trabalho minucioso de perfuração; a propósito desta sua faceta de sociabilidade, alguém diz ter um amigo domesticado um pica pica, que agora imita a voz humana.

Saudades de Londres

Cristina Ribeiro, 03.12.09

Talvez porque uma irmã vai amanhã para Londres, e morro de inveja dela, tento revisitá-la com a ajuda da memória, reconstituir aquela que foi a minha primeira visita à cidade do Big Ben. E porque já estamos no dia em que se comemora O Dia da Vitória, tão intimamente ligado ao homem de génio que foi o Primeiro Ministro britânico da altura, passo directamente ao segundo da minha estadia. Munida de mapa e de guia dirigi-me ao edifício onde então funcionava o War Cabinet, ao lado do qual se encontrava agora o Churchill Museum. Lembro ter sentido essa visita de uma forma quase eufórica: estava a ver " in loco " um sítio que sempre me fascinara, desde que comecei a interesssar-me pela II Guerra Mundial, e isso fora muito tempo antes, quando na Normandia visitei o Museu do Desembarque, em Arromanches. E foi com emoção que lembrei as palavras então por ele ditas: « Nada tenho a oferecer a não ser sangue, esforço, suor e lágrimas ».

Saudades de Londres

Cristina Ribeiro, 03.12.09

Andava no Liceu quando um amigo me ofereceu um livro de Virginia Woolf - «Orlando. Uma Biografia ». Como nunca ouvira falar de tal escritora, interroguei-o Quem era ela?; que pertencera a um marcante grupo literário inglês: o grupo de Bloomsbury. Lembro-me de que na altura procurei saber um pouco mais, e ficou a promessa de que, se algum dia fosse a Londres tentaria encontrar essa parte da capital inglesa, que me pareceu digna de visita, e esqueci o assunto. Na primeira vez que lá fui, as prioridades foram outras, pelo que o encontro ficava adiado, mas quando lá voltei não podia protelá-lo mais, até porque, entretanto, soubera que aí se encontrava o Museu Britânico, que toda a gente me dizia ser imperdível.

Do hotel dirigi-me directamente ao museu, pensando deixar para a parte de tarde a visita à praça, que sabia já, por fotografias, ser bonita, e arredores. Mas as contas saíram-me furadas, pois que só saí do edifício pouco antes de encerrar: tudo me fascinava... Comecei por visitar uma exposição especial dedicada à Pedra Roseta, onde logo encontrei uma senhora portuguesa com os quatro filhos, todos pequenos. Encantou-me a curiosidade deles e a acutilância das suas perguntas - via-se que se tratava de crianças habituadas a visitar museus. Seguiu-se a Sala Egípcia, as Gregas ( com os maravilhosos mármores de Elgin ) e tantas mais. Cansada, mas satisfeita. No dia seguinte, depois de uma noite de descanso dos pés maltratados, dirigi-me então ao bairro cheio de praças ajardinadas, sem falhar uma visita aos vários Departamentos Universitários ali ao lado.

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