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O Tempo Esse Grande Escultor

Um arquivo dos postais que vou deixando no Estado Sentido, mas também um sítio onde escrever outras coisas minhas..Sem Sitemeter, porque pretende ser apenas um Diário, um registo de pequenas memórias...

O Tempo Esse Grande Escultor

Um arquivo dos postais que vou deixando no Estado Sentido, mas também um sítio onde escrever outras coisas minhas..Sem Sitemeter, porque pretende ser apenas um Diário, um registo de pequenas memórias...

E o rapaz que não vinha!...

Cristina Ribeiro, 18.10.13

A mulher bem lançava os olhos ao caminho, e resmungava.

Havia já quase meia hora que o mandara por mor de meia broa...  sim, que era dia em que a vendeira cozia, e o seu Manel não a dispensava na hora da sopa...

Ai dele, quando chegasse! Se a venda não ficava nem a cinco minutos de casa... Decerto algum ninho de pássaro, ou algum catraio a desafiá-lo para uma corrida até ao rio... E ia olhando o carreiro por onde viria o seu homem; devia estar a chegar... dianho de rapaz!...


Estava nisto, quando ouviu um assobio, vindo de lá das bandas da aldeia: - e ainda assobiava, o malandro...


Que estivera à espera que a dona Lucinda tirasse a broa do forno, pois que tivera de ir ao médico e se atrasara.


E já lá chegava o pai, de enxada ao ombro: vinha cheio de fome.

" Aquela coisinha humana ".

Cristina Ribeiro, 12.01.12

                                                            

Deus está atento.

É a frase que me vem à cabeça sempre que penso nela: uma mulher jovem, do meu círculo de amizades, engravidou. Até aqui tudo bem.

Acontece que era uma fumadora inveterada, a quem o médico, tinha ela 12 anos, disse para colocar à frente da cama a radiografia dos pulmões para que, todos os dias, se desse conta do mal que estava a fazer-lhes, e que, quando o dentista a pôs perante uma escolha- o cigarro ou os dentes-, não hesitou em optar pelo tabaco, acrescendo ainda o facto de um exagerado apego ao álcool ser causa de vários alertas hepáticos, sempre ignorados.

" Era ", escrevi, porque, e nisso maravilhou toda a gente, pois que  todos disseram " mais nada, nem ninguém, no mundo a faria mudar de comportamento ", logo que soube da gravidez deixou de fumar e de beber, porque se consciencializou de que o filho, com quem passou a falar regularmente, enquanto acaricia a barriga, lho pedia.

 Só " aquela coisinha humana ".

E o comboio lá ia subindo, naquele ritmo quase dolente,

Cristina Ribeiro, 21.04.11

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cortando a serra ladeada de vinhedos em socalcos que quase tocavam o céu, azul que ele estava naquele dia de Primavera. Saira da estação de Campanhã, aonde o pai a levara ainda a lua não dera lugar ao sol, e agora o sono que, por vezes, a mantinha de olhos fechados, apesar do sol bem alto já. Que não se deixasse dormir a pontos de passar pela estação onde o tio a esperava!, recomendara a mãe, quando dela se foi despedir. Pedira, por isso, ao revisor que a acordasse quando chegasse a Tormes, não fosse Morfeu, ou o pai deste,  pregar-lhe a partida.

E nesses momentos em que o filho de Hipno a fazia cair nos seus braços era com Jacinto e José Fernandes que sonhava, eles que muito antes tinham feito aquela mesma viagem.

Desejou então que lá em casa dos tios houvesse um arroz de favas à sua espera...

A impaciência crescia à medida que sentia o passar do tempo.

Cristina Ribeiro, 09.02.11

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 Já o escuro da noite, que durante horas a acompanhara naquele estado de vigília, dava lugar à claridade da manhã que agora rompia pela janela semi-aberta, e a lua cedia o lugar ao sol, que prometia iluminar mais um dia frio. Diálogos que guardara de tempos passados misturavam-se com outros imaginários, tão imaginários quanto os seus interlocutores. No corredor o silêncio apenas era cortado a cada meia hora por mais uma badalada do pêndulo do velho relógio de parede.

Não demoraria a ouvir a chilreada dos pássaros que, enganados na Estação, se tinham antecipado à Primavera, e se haviam recolhido no beiral da casa.Nessa altura talvez o sono vencesse, como já tantas e tantas vezes acontecera, e então deixar-se-ia embalar no aconchego, onde continuaria aqueles diálogos antes encetados, agora no mundo, imaginário também ele, do sonho.

A dedicatória, na página de rosto,

Cristina Ribeiro, 01.12.10

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era ilegível, denunciando a passagem do tempo, mas a letra, bem via, era feminina, de uma elegância e leveza como nunca vira.

            Naquele dia, na casa dos avós, e sem nada que fazer naquele tempo por eles reservado à sesta, resolvera subir ao sótão, onde, por certo, encontraria, de entre aquelas velharias todas, algo que lhe distraísse o tédio.

Só depois de muito basculhar encontrou, numa gaveta de um velho contador, sem uma perna, aquele livro de capas vermelhas.

Com ele na mão, olhou pela janela: lá fora o tempo convidava à leitura, logo agora que o carvalho , debaixo do qual o avô instalara, no ano anterior, um banco de granito, começava a expor a nova folhagem.

Mais tarde, quando os avós acordassem, havia de lhes perguntar a quem pertencera...

 

Sentada no degrau da casa que habitava

Cristina Ribeiro, 01.12.10

desde que casara com o António ( Deus o tenha em bô lugar! ), a Ser' Ana olhava suspirando o bando de rapazes e de raparigas que iam naquele dia, ( que naquele ano calhava ser numa Segunda Feira de Páscoa ), em alegre cantoria pelo caminho que levava à Senhora da Saúde.

Veio-lhe à memória aquele dia em que começara o namoro com o avô dos pequeninos que brincavam no terreiro em frente.

Lembrou-se então da toalha que, noite adentro, acabara de bordar: não seria porque tirara a tarde para folgar que a madrinha iria ficar sem ela, e ainda se alembrava bem de como lhe parecia que a agulha ganhara asas...; a toalha que agora estava na arca, que lá isso  a madrinha quisera porque quisera, ( " e não se discute mais! ) que lhe fizesse a mesa bonita aquando do casório, e, depois nos baptizados...


Aprendera com o velho pastor,

Cristina Ribeiro, 01.12.10

com quem começara a guardar cabras, lá na Serra da Cabreira, e mesmo sabendo que aquele era um parente pobre dos demais instrumentos musicais, vistos de relance no livro do filho do Mestre-Escola, para ele não haveria nunca som mais bonito do que o que arrancava da gaita de beiços. Era então que esquecia os seus numerosos males...
E quando não conseguia adormecer era muito vulgar ouvir-se, e nisso rasgava o silêncio da noite, que até as relas respeitavam, o som da melodia que muitas vezes o acompanhava, noite adentro. Nessas alturas, o velho, que com ele partilhava o leito de folhelho, limitava-se a abanar a cabeça, num gesto de compreensão.E de olhos fechados, na escuridão daquele pequeno quarto sem janelas, pensava que só o tempo o ajudaria. Sabia - já passara pelo mesmo, e ali estava, rijo, pronto para lhe estender a mão, e assim guiá-lo até à claridade que, e ele sabia-o bem, não estava pronto ainda para enxergar.O tempo, a cura de todos os males...

Conhecesse o velho Marguerite Yourcenar, e pensaria, certamente, " O Tempo Esse Grande Escultor "...



Fechar as portadas. Que havia muito escurecera,

Cristina Ribeiro, 01.12.10

 

sem que vislumbrasse estrelas, ou sequer o mais ténue sinal de que a lua fosse aparecer. A escuridão descera como o pano negro de que , pouco antes, a tia falara ter visto cair sobre o palco, quando, uns meses atrás, fora ao Teatro, lá na Capital.

Mas, e antes que as esquecesse, iria escrever, no Diário que mantinha desde que aprendera as primeiras letras, um presente da mãe, que sempre a incentivara nessa escrita intimista, as palavras que ouvira ao padre-cura, em mais um daqueles serões que, periodicamente, aconteciam lá em casa; que eram palavras da Bíblia, tinha dito, e diziam da lealdade que desaparecera de entre os filhos dos homens, e da duplicidade que havia no seu coração.

Só então cerraria as portas à tormenta que se desenrolava lá fora, e apagaria a vela.

Agora que a tormenta passara, já conseguia sorrir

Cristina Ribeiro, 01.12.10

Lembrava-se, oh!, como se lembrava, de se sentir quase irmanada à «  Linda Inês  » naquele « engano ledo e cego », e não se cansava de pedir ao Letes o esquecimento que o rio lhe negava, àquele ser que nele vivia, e que todos os dias invocava, nos campos elísios das margens limianas. «Amanhã Será Outro Dia », repetia-se todas as noites, numa quase certeza de que esse dia estava longe ainda.

Mas uma  noite, lá no Olimpo, os deuses condoeram-se, e deliberaram aliviá-la do redemoinho de sentimentos que abrigava no peito, e nessa manhã, quando os primeiros raios de sol, entrando pela janela, a despertaram de um sono que começara por ser revolto, teve a certeza de que  começava então o « Outro Dia ».

Sentiu-se uma fénix, a renascer das cinzas.


Quando lhas trouxe, de Viana,

Cristina Ribeiro, 01.12.10

 fora cumprir uma Promessa feita a Santa Luzia, fê-la prometer que só as  estrearia naquele dia: fazia vinte anos e  festejava-se a Santa a quem devia o nome. Sim, porque a madrinha, que agora lhe dava as arrecadas, tudo fizera, insistira, porque assim teria de ser, para que os pais lhe dessem esse nome. E estava-lhe agradecida, porque gostava de se chamar Marta...

Mas na gaveta onde as guardara, estava também o cordão de ouro que a avó lhe deixara de herdança, e já se imaginava  no terreiro em frente à capela, assim enfeitada...

A avó gostaria que o usasse , também, pensou...