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O Tempo Esse Grande Escultor

Um arquivo dos postais que vou deixando no Estado Sentido, mas também um sítio onde escrever outras coisas minhas..Sem Sitemeter, porque pretende ser apenas um Diário, um registo de pequenas memórias...

O Tempo Esse Grande Escultor

Um arquivo dos postais que vou deixando no Estado Sentido, mas também um sítio onde escrever outras coisas minhas..Sem Sitemeter, porque pretende ser apenas um Diário, um registo de pequenas memórias...

Era muito novinho quando veio cá pra casa.

Cristina Ribeiro, 01.12.10

 

 

 

Como todos os cachorrinhos, o Gauguin era muito brincalhão e roía tudo o que lhe aparecia pela frente, Meigo, muito meigo, como muitos dos da sua espécie, especialmente os Labradores.
Foi crescendo, sempre muito acarinhado por todos, até atingir o porte que hoje é o dele: um cão imponente, com um olhar aquoso que desperta a ternura do humano mais indiferente. Foi por essa altura que uma companheira se lhe veio juntar: a Siena. Encontrada na rua, uma bela cadela castanha -cor - de - pinhão, que contrastava com o branco - marfim do Gauguin. Foi amizade ao primeiro olhar e logo se tornaram inseparáveis: onde estava um, era certo encontrarmos a outra.
Faziam as delícias dos condutores, quando, logo de manhã, iam para um lugar sobranceiro à estrada, de onde viam os carros passar. E era como se estivessem a ver um jogo de ténis, olhando ora para um lado, ora para outro,observando o movimento nos dois sentidos. O tempo ia decorrendo, num contentamento partilhado, até que a tragédia veio, abruptamente, pôr um fim a tão perfeita comunhão: gostavam de vez em quando, de atravessar o portão e andar pelos montes, mas sempre voltavam, muitas das vezes esfomeados, depois de incursões cansativas, Mas um dia não foi assim, e a Siena foi atropelada.Tristeza de nós todos e profunda solidão do Gauguin, que passou dias sem comer, ele que come tudo o que lhe aparece pela frente: não podia saber o que se tinha passado com a amiga...

 

Outros cães e cadelas vieram depois, atenuando a perda, mas nunca aquela amizade se repetiu.
Hoje, com 13 anos, o Gauguin está velho e surdo. Mas continua aquele cão muito meigo, que, assim que vê algum de nós, se deita com as patas para o ar, para que façamos carícias na barriga.Quando, de manhã, uma irmã vai correr, o Gauguin vai sempre atrás dela. Acompanha-o a Gorki, uma cadelinha preta, que por ser mais nova o provoca constantemente para a brincadeira; por vezes o Gauguin alinha, mas, sentindo o peso dos anos, nem sempre está para a aturar.

" Rapa, Tira, Deixa e Põe "

Cristina Ribeiro, 01.12.10

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- Jogar a pinhões...; temos de jogar a pinhões na noite de Natal. Os mais pequenos não conhecem essa tradição, de que tanto gostávamos na idade deles...

- Precisamos então de comprar um Rapa, e arranjar pinhas.

 

Enquanto saboreávamos as batatas com bacalhau, as pinhas, bem no meio do borralho, na lareira, aqueciam até se abrirem, e delas podermos, depois da ceia,tirar os pinhões, que submergíamos na água de um alguidar: só os que iam ao fundo entravam no jogo- os outros eram lançados ao fogo.

               Reuníamos os pinhões e lançávamos um dado de madeira, com as letras R, T,D e P- sorte a daquele que Rapava os pinhões todos e azar daquele a quem só saía a letra P, de " põe".

Fosse qual fosse o resultado, o saldo era sempre divertimento certo.

Era sempre no dia dezasseis

Cristina Ribeiro, 01.12.10

 

Já todos em férias escolares, primeiro os mais velhos, que já frequentavam o Secundário, em Guimarães, depois nós os que ainda éramos alunos da D. Maria ou da D.Laurinha, na Escola Primária de Sande. Nesse dia, que é também o do aniversário duma irmã, a programação televisiva, até ao cair da tarde, era preenchida pelo " Natal dos Hospitais ".

Bem agasalhados, lá nos dirigíamos para o Souto, aqui perto, para apanharmos musgo, o melhor das redondezas: rasteiro e muito verde, era difícil arrancá-lo dos penedos onde crescera- lembro-me de uma vez ter dito ao irmão mais velho que " aquele " era realmente o mais bonito, mas o  quão dificultoso ele era, e ele me ter respondido, com o saber de rapaz que já estudava na Cidade, " tudo o que é bom, é difícil"-

             Musgo  na caixa de papelão, chegara a hora de começar o Presépio: primeiro, desembrulhar as figuras, que a mãe tinha guardado no ano anterior, e eram muitas- além da Sagrada Família, havia os Reis-Magos, os pastores, as ovelhas...

A cabana, sempre muito elaborada, feita com canhotas, era o pai que a fazia.Depois podíamos dar asas à imaginação: lagos com papel de prata, caminhos  demarcados com serrim...

 

                   Com o passar dos anos, o Presépio foi-se simplificando, até chegar à forma actual, em que só a Sagrada Família, o burrinho e a vaquinha aparecem, mas à volta dela os pequeninos ainda  se extasiam.

 

A dedicatória, na página de rosto,

Cristina Ribeiro, 01.12.10

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era ilegível, denunciando a passagem do tempo, mas a letra, bem via, era feminina, de uma elegância e leveza como nunca vira.

            Naquele dia, na casa dos avós, e sem nada que fazer naquele tempo por eles reservado à sesta, resolvera subir ao sótão, onde, por certo, encontraria, de entre aquelas velharias todas, algo que lhe distraísse o tédio.

Só depois de muito basculhar encontrou, numa gaveta de um velho contador, sem uma perna, aquele livro de capas vermelhas.

Com ele na mão, olhou pela janela: lá fora o tempo convidava à leitura, logo agora que o carvalho , debaixo do qual o avô instalara, no ano anterior, um banco de granito, começava a expor a nova folhagem.

Mais tarde, quando os avós acordassem, havia de lhes perguntar a quem pertencera...

 

Sentada no degrau da casa que habitava

Cristina Ribeiro, 01.12.10

desde que casara com o António ( Deus o tenha em bô lugar! ), a Ser' Ana olhava suspirando o bando de rapazes e de raparigas que iam naquele dia, ( que naquele ano calhava ser numa Segunda Feira de Páscoa ), em alegre cantoria pelo caminho que levava à Senhora da Saúde.

Veio-lhe à memória aquele dia em que começara o namoro com o avô dos pequeninos que brincavam no terreiro em frente.

Lembrou-se então da toalha que, noite adentro, acabara de bordar: não seria porque tirara a tarde para folgar que a madrinha iria ficar sem ela, e ainda se alembrava bem de como lhe parecia que a agulha ganhara asas...; a toalha que agora estava na arca, que lá isso  a madrinha quisera porque quisera, ( " e não se discute mais! ) que lhe fizesse a mesa bonita aquando do casório, e, depois nos baptizados...


Aprendera com o velho pastor,

Cristina Ribeiro, 01.12.10

com quem começara a guardar cabras, lá na Serra da Cabreira, e mesmo sabendo que aquele era um parente pobre dos demais instrumentos musicais, vistos de relance no livro do filho do Mestre-Escola, para ele não haveria nunca som mais bonito do que o que arrancava da gaita de beiços. Era então que esquecia os seus numerosos males...
E quando não conseguia adormecer era muito vulgar ouvir-se, e nisso rasgava o silêncio da noite, que até as relas respeitavam, o som da melodia que muitas vezes o acompanhava, noite adentro. Nessas alturas, o velho, que com ele partilhava o leito de folhelho, limitava-se a abanar a cabeça, num gesto de compreensão.E de olhos fechados, na escuridão daquele pequeno quarto sem janelas, pensava que só o tempo o ajudaria. Sabia - já passara pelo mesmo, e ali estava, rijo, pronto para lhe estender a mão, e assim guiá-lo até à claridade que, e ele sabia-o bem, não estava pronto ainda para enxergar.O tempo, a cura de todos os males...

Conhecesse o velho Marguerite Yourcenar, e pensaria, certamente, " O Tempo Esse Grande Escultor "...



Fechar as portadas. Que havia muito escurecera,

Cristina Ribeiro, 01.12.10

 

sem que vislumbrasse estrelas, ou sequer o mais ténue sinal de que a lua fosse aparecer. A escuridão descera como o pano negro de que , pouco antes, a tia falara ter visto cair sobre o palco, quando, uns meses atrás, fora ao Teatro, lá na Capital.

Mas, e antes que as esquecesse, iria escrever, no Diário que mantinha desde que aprendera as primeiras letras, um presente da mãe, que sempre a incentivara nessa escrita intimista, as palavras que ouvira ao padre-cura, em mais um daqueles serões que, periodicamente, aconteciam lá em casa; que eram palavras da Bíblia, tinha dito, e diziam da lealdade que desaparecera de entre os filhos dos homens, e da duplicidade que havia no seu coração.

Só então cerraria as portas à tormenta que se desenrolava lá fora, e apagaria a vela.

Agora que a tormenta passara, já conseguia sorrir

Cristina Ribeiro, 01.12.10

Lembrava-se, oh!, como se lembrava, de se sentir quase irmanada à «  Linda Inês  » naquele « engano ledo e cego », e não se cansava de pedir ao Letes o esquecimento que o rio lhe negava, àquele ser que nele vivia, e que todos os dias invocava, nos campos elísios das margens limianas. «Amanhã Será Outro Dia », repetia-se todas as noites, numa quase certeza de que esse dia estava longe ainda.

Mas uma  noite, lá no Olimpo, os deuses condoeram-se, e deliberaram aliviá-la do redemoinho de sentimentos que abrigava no peito, e nessa manhã, quando os primeiros raios de sol, entrando pela janela, a despertaram de um sono que começara por ser revolto, teve a certeza de que  começava então o « Outro Dia ».

Sentiu-se uma fénix, a renascer das cinzas.


Quando lhas trouxe, de Viana,

Cristina Ribeiro, 01.12.10

 fora cumprir uma Promessa feita a Santa Luzia, fê-la prometer que só as  estrearia naquele dia: fazia vinte anos e  festejava-se a Santa a quem devia o nome. Sim, porque a madrinha, que agora lhe dava as arrecadas, tudo fizera, insistira, porque assim teria de ser, para que os pais lhe dessem esse nome. E estava-lhe agradecida, porque gostava de se chamar Marta...

Mas na gaveta onde as guardara, estava também o cordão de ouro que a avó lhe deixara de herdança, e já se imaginava  no terreiro em frente à capela, assim enfeitada...

A avó gostaria que o usasse , também, pensou...


Voltavam do rio, cansados

Cristina Ribeiro, 01.12.10

- tinham saído bem cedo, mal raiava a aurora -e com uma fome de cão, mas contentes.Porque se assim tinham pensado, melhor o fizeram, e o cesto de vime que levava a tiracolo ia agora cheio, com os  peixes que acabara de pescar naquele rio que continuava a conhecer tão bem. Não, não perdera o jeito...

Pelo caminho que levava a casa da tia, e enquanto o primo, num despreocupar muito seu, assobiava a moda da carrasquinha, ia pensando o quanto necessárias lhe eram estas estadias na aldeia, mas na certeza do regresso à cidade grande, onde, quando de lá saíu,  lançara raízes; era aí que estava o seu trabalho, e era aí que encontrava os amigos com quem se reunia para falar de outras coisas para além da pesca e da vida, forçosamente limitada, que ali se desenrolava, num ritmo que não era já o seu.