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O Tempo Esse Grande Escultor

Um arquivo dos postais que vou deixando no Estado Sentido, mas também um sítio onde escrever outras coisas minhas..Sem Sitemeter, porque pretende ser apenas um Diário, um registo de pequenas memórias...

O Tempo Esse Grande Escultor

Um arquivo dos postais que vou deixando no Estado Sentido, mas também um sítio onde escrever outras coisas minhas..Sem Sitemeter, porque pretende ser apenas um Diário, um registo de pequenas memórias...

Na margem do Mondego, um homem jovem, sozinho

Cristina Ribeiro, 30.11.09

 

escreve, pensativo. De quando em quando olha o rio, tristemente. Eis que surge por detrás um bando de estudantes, em barulhenta cavaqueira.

- Mais uma vez a cabra da torre tocou, e o senhor António Nobre refugia-se entre os seus papéis; que escreves?

- " O livro mais triste que há em Portugal " ...

 

Um dos que chegavam agora, arranca de supetão o papel onde António acabara de escrever, e declama, com gestos largos

 

" Quando cheguei aqui, Santo Deus! Como eu vinha Nem mesmo sei dizer que doença era a minha, Porque eram todas, eu sei lá! Desde o ódio ao tédio, Moléstias d'alma para as quais não há remédio "

 

- Só teu, poeta da nostalgia e do sentimento...; se queres remédio para os teus males de coração, anda connosco ver as tricanas!

Que não. Tinha de acabar o que começara, pedia-lho esse sentir de que os colegas escarneciam. Os estudantes abalaram, a rir, e António, de novo só, pôde escrever o que a alma lhe ditava.

Finalmente podia entregar as provas, já revistas,

Cristina Ribeiro, 30.11.09

 

 

da novela que pela primeira vez fora editada em Ferrara: « História de Menina e Moça ». Talvez agora acrescentasse ao título « Saudades »...; depois iria ao Paço onde marcara encontro com Sá de Miranda... Ia nestes pensamentos, quando lhe surge pela frente um cortesão.

- Bernardim, ides ao Paço? Acompanho-vos.

- Vou, mas antes passarei pelo meu impressor...

- Contai-me da vossa viagem a Itália. Soube que fostes com o poeta Sá de Miranda. Quais as vossas impressões dessa terra de grandes pintores.

- De grandes pintores e de grandes poetas. Por certo conheceis já a Obra desse grande que foi Dante Alighieri, mas tenho de vos mostrar uns sonetos do Divino Petrarca...; eis-nos chegados à oficina onde imprimirão o meu livro. Já oiço a impressora

- Bendito Gutenberg.

- Dizeis bem; bendito...

Dirigia-se D. António de Noronha ao Paço,

Cristina Ribeiro, 30.11.09

 

naquele dia de Primavera, quando, ao passar pelo Cais das Colunas, lhe pareceu ver alguém conhecido, por entre a multidão que assistia ao zarpar de mais uma caravela. Aproximou-se e pôs-lhe a mão no ombro. - Não me enganei, sois mesmo vós, Luís Vaz. Esperávamos encontrar-vos no Paço, ontem. - Estive a escrever umas cartas, que acabo de enviar a uns amigos que andam lá longe, pelas Índias, senhor. Mas logo lá estarei. - Vinde, vinde, meu amigo, que larga é já a vossa fama de Poeta grande. Sentimos a vossa falta; e então as damas...

5 de Outubro de 1143

Cristina Ribeiro, 30.11.09

 

Nas primeiras horas da madrugada, Dom João Peculiar, primaz das Espanhas, deixava o albergue onde pernoutara, quando se cruza com um peregrino que, do mesmo modo, ali se acolhera.

- Muito folgo em ver Vossa Senhoria. Levais destino ?

- Espero encontrar-me daqui a uma hora, em Zamora, com o meu Príncipe, que já lá se encontra há dias. Não o pude acompanhar na ocasião, por me reterem em Braga coisas grandes. Vamos formalizar, na presença do Cardeal Guido de Vico, enviado do Papa, aquilo que há alguns anos o moço Afonso começou a talhar - a independência do nosso Reino.

Que subisse ao quarto e lhe trouxesse os óculos;

Cristina Ribeiro, 29.11.09

 

só assim poderia ler o livro que lhe oferecera naquele dia de aniversário. Depois de ter procurado nos lugares mais óbvios, em vão, decidiu-se pelo toucador - conhecia bem as distracções da avó...; talvez os tivesse guardado naquela pequena gaveta... Não viu os óculos, mas chamou-lhe a atenção um estojo branco, com rosas cor-de-chá gravadas. Abriu-o e deparou com o leque mais bonito, mais delicado, que alguma vez vira, Em seda cor de marfim, com ramagens da mesma cor em baixo relevo. A avó tinha de contar onde, e quando, o adquirira; parecia uma peça antiga... Enquanto assim pensava, viu os óculos em cima da cadeira. Agarrou neles e desceu, sem esquecer o estojo do leque. Na sala, no andar térreo, estava a família toda reunida. Dirigiu-se à avó, a quem entregou os óculos, e, sentando-se aos seus pés, pediu-lhe lhes contasse a história daquele leque, desconhecido de todos os netos. Que memórias me trazes, minha neta! Este leque deu-mo o teu avô quando fomos em lua -de- mel a Paris. Uma tarde, passávamos nós numa pequena rua perto da Ópera, quando parámos frente a um antiquário. Encantei-me com este leque, mas nada disse, porque devia ser uma peça cara. Fomos para o hotel, que era quase hora de jantar. Lá chegados, o avô disse-me para subir, que não demoraria : ia só comprar o jornal da tarde... Com efeito, passado algum tempo chegava com o jornal. Foi só o tempo de mudar de roupa, e descemos para jantar. Quando voltámos ao quarto, aguardava-me a maior das surpresas - em cima da cama estava o leque, aberto, ao lado deste estojo... .O avô tinha reparado no meu deslumbramento e fora comprá-lo, com o pretexto do jornal...; é quase como se ele estivesse entre nós, neste dia que nunca esquecia.

A avó fazia anos.

Cristina Ribeiro, 29.11.09

 

Quatro gerações, e ela continuava a ser o centro do pequeno mundo que tinham feito dentro de muros, mas sempre com a porta escancarada para quem nele quisesse entrar, e que viesse por bem: e, também aí, a avó era única, exímia a ler o carácter de cada qual - um leve assentimento com os olhos, e o recém chegado passava a ser dos seus: a vida que a ensinara a reconhecer quem lhe chegava a casa.

E como estava cheia. Gente que subia escadas, outros as desciam, numa azáfama pouco habitual, para quem se habituara à calma voz de comando da matriarca. Nesse dia, porém, delegara todos os afazeres caseiros, e retirara-se para o jardim, logo rodeada pelos netos mais pequenos, e pelos bisnetos, que agora reclamavam mais uma das histórias por ela vividas na sua já longa vida. Alegrias e tristezas, por igual, mas o dia era de festa e a famosa selectividade da memória não o deixaria macular. E vendo uma cena assim, com os filhos tão atentos às palavras da aniversariante, os adultos olhavam-se comovidos - lembraram as vezes em que eram eles a pedir outra história.

Tendo nascido e crescido numa aldeia

Cristina Ribeiro, 28.11.09

 

                                  ( A casa do Arturinho )

 

cedo me habituei a conviver com toda a gente; todos nos conhecíamos, e foi nessa altura que conheci pessoas boas, almas simples e amigas; refiro-me concretamente a pessoas que já não estão entre nós, e que eram família, não pelo sangue, mas no carinho e amizade com que sempre nos brindaram . Hoje pensei muito em três dessas pessoas, e falei delas com a minha mãe, que acrescentou pormenores comoventes dessas vidas.- por exemplo fiquei a saber que o Luizinho, uma pessoa de quem todos gostavam, que vivia do que lhe davam - roupa, comida...- , e cujo sorriso tão sincero e inocente- sempre a dizer " É vida! É vida! ", era nele o espelho de uma alma pura, com o dinheiro que lhe iam dando juntou o necessário para mandar dizer uma missa quando morreu outra pessoa filha de um deus ainda menor- Está no céu! - concluiu a minha mãe.

 

Outra pessoa boa, de quem já falei aqui, era o SrArmindo. Como gostava de descer aquelas escadas de madeira tosca para falar com o SrArmindo!

 

A terceira pessoa era o Arturinho: a viver com uma irmã também já idosa, numa casinha muito perto da minha avó materna, todas as crianças que frequentavam a , muito próxima, Escola Primária o adoravam. Presenteava-nos muitas vezes com sacholinhas ( pequeninas enxadas ) que fazia com bocados de aço que usava para fazer os garfos que vendia na feira.

Queria falar com a minha mãe.

Cristina Ribeiro, 28.11.09

 

A ver se lhe comprava rifas para ajudar na reconstrução da igreja de S. Martinho de Sande. Pela idade aparente e forma como falou, imaginei tratar-se de uma amiga de infância. Depois foi o assistir, e nela participar também, pois que queria satisfazer a curiosidade, à conversa entre amigas que andaram juntas na Escola Primária há mais de sessenta anos, e continuaram essa amizade na juventude. Separadas geograficamente pelos respectivos casamentos Amiga de quem ouvira falar muitas vezes, mas não conhecia. Fiquei a saber que era uma das muitas que, feita a 3ª Classe, se dedicaram à tecelagem de peças de tecido de algodão, em tear manual, na casa de cada uma delas, mas para uma fábrica da cidade, que lhes fornecia a linha de algodão. -" Lembras-te de quando fugias à tua mãe, para ires enrolar fio nas canelas para minha casa? " -" E quando íamos para o monte da Senhora da Saúde, apanhar os picos dos pinheiros para acendermos o lume? ".

 

E por momentos foi como se tivesse vivido " o tempo delas ".

Desta casa saía muitas vezes,

Cristina Ribeiro, 28.11.09

 

madrugada ainda, alumiado o caminho pela candeia alimentada por petróleo, a tia avó Maria a caminho da igreja, longe que ela ficava. A essa hora, já a irmã, minha avó, havia muito tratava de cozer o pão, a tempo de quem ia trabalhar o ter já pronto para, lá na Venda, acompanhar a aguardente mata-bicho com que cada um começava o dia. De cada vez a tia Maria batia na janela da casa do forno, a dar os Bons Dias, e quando a irmã dizia ser ela tola, que àquela hora deveria estar em casa, que deveria estar a fazer companhia à mãe , respondia: vou rezar por vós, já que não podeis ir.

Noite de lua cheia. Aqueceu o clima, mas aqui, no monte,

Cristina Ribeiro, 28.11.09

 

venta. Quando em noites assim, de vento forte, a minha avó sempre contava à minha mãe e tios, pequenos que eram, histórias que os punham com os cabelos em pé, e com medo de irem dormir sozinhos: era a altura preferida pelo lobisomem para sair à rua, ou para o também lendário corredor vaguear sem destino pela aldeia, tornando seu escravo todo o ser humano que lhe aparecesse. O melhor mesmo seria pôr traves nas portas, náo fosse o diabo teçê-las. E, no fim, iam dormir todos juntos, por via dos pesadelos.

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